sexta-feira, 29 de abril de 2011

Vida

  


" Tenho ali uma foto dos meus avós maternos. Aquele homem alto e magro que está na foto é meu avô Jerónimo, pai da minha mãe, e ela é a minha avó, que se chamava Josefa. Meu avô era pastor, não tinha nem mesmo uma vara de porcos, tinha umas oito ou dez porcas que depois pariam leitões que eles criavam e vendiam, e disso viviam ele e ela. As pocilgas ficavam ao lado da casa [...]. No inverno, podia acontecer, e aconteceu vez ou outra, que alguns leitõezinhos, os mais fracos, porque as pocilgas ficavam do lado de fora, podiam morrer de frio. Então, os dois levavam esses leitõezinhos para a cama, e ali dormiam os dois velhos com dois ou três porquinhos, debaixo dos mesmos lençóis, para aquecê-los com seu calor humano. Este é um episódio autêntico.

 Outro episódio. Levaram este meu avô, quando estava muito doente e muito mal, para Lisboa, para um hospital, onde depois veio a morrer. Antes de sabê-lo, em seus 72 anos, aquela figura que nunca esquecerei se dirigiu à horta, onde havia algumas árvores frutíferas e, abraçando-as uma a uma, se despediu delas chorando e agradecendo pelas frutas que tinham dado. Meu avô era um analfabeto total. Não estava se despedindo da única riqueza que tinha, porque aquilo não era riqueza, estava se despedindo da vida que elas eram e da qual ele não compartilharia mais. E chorava abraçado a elas porque intuía que não voltaria a vê-las. Essas duas histórias são mais do que suficientes para explicar tudo. A partir daí, as palavras sobram."

José Saramago

sábado, 16 de abril de 2011

Natureza Viva

"(...)

Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti e tuas ciladas, em tua viva emoção sintética a ponto de parecer real, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando atento e educado que de alguma forma termines o que começaste.


Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa da paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de seu poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos.

Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele.

Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo se estás nela. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro, sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que nesse exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur no canto da sala depois de apagar a luz mais forte no alto. E finalmente começas a falar."

Caio Fernando Abreu
"Morangos Mofados"